Ao ler o texto que a seguir transcrevo, tem todo o cabimento esta frase lapidar que Luís de Sttau Monteiro coloca na boca do judeu Abraão Zacut, traduzindo a acusção aos membros da comunidade que durante anos e anos fizeram vista grossa das injustiças até elas lhes baterem violentamente à porta: "(...) porque aos olhos do Senhor há apenas um crime: o de fechar os olhos".
Beltold Brecht tem um poema bem conhecido que toca a mesma tecla do olhar para o lado, por não ser nada connosco - até que é mesmo connosco.
Maria João Marques, sobre a expulsão do ex-juiz (o "ex" dá-me imenso gozo) e o julgamento que se prepara, espanta-se com o facto dos meretíssimos (eu prefiro, francamente, "meretríssimos") terem convivido pacificamente com o exibicionismo dos colegas Rangel & Galante como se nenhum tivesse reparado (e estranhado...) a vida de ostentação que levavam - sem lhes ser conhecida riqueza que o justificasse.
Foram, pois, cúmplices por omissão, cometendo o maior crime, aos olhos do Senhor: o de fechar os olhos.
Com a devida vénia ao Público, aqui fica o texto que vinha no jornal de anteontem:
"Sabem o que me lembram os vários juízes arguidos na Operação Lex e a expulsão da magistratura de Rui Rangel? A Igreja Católica com os escândalos de pedofilia.
Os padres católicos entretiveram-se durante décadas especializando-se em recomendar uma moral sexual draconiana — e abusiva — aos crentes do mundo todo, em vez de se dedicarem,
como deviam, a trabalhar em prol dos mais pobres e fracos. Gastavam tempo a decidir se o método Lamaze do parto sem dor ia contra as palavras da Bíblia (verdade, existiu um documento papal sobre isto).
Desmaiavam de indignação com a pílula contracetiva. Diziam enormidades sobre o uso de preservativo, incluindo como meio de proteção contra doenças sexualmente transmissíveis. Esperavam confissão de tudo o que não fosse a sexualidade mais contida dentro do casamento. Isto tudo enquanto milhares de padres abusavam sexualmente e violavam muitas das crianças e adolescentes com que contactavam. O resultado?
Por muito que tentem, a igreja perdeu qualquer legitimidade para dar palpites sobre a sexualidade alheia.
Como pode uma instituição que pactuou, protegeu, encobriu e acolheu autores dos crimes mais abjetos arvorar-se em árbitro de comportamento sexual moral?
Não pode. (Não digo isto por jacobinismo revanchista. Sou católica, estudei numa instituição de jesuítas, não fui lá vítima de abuso — apesar de saber de quem tenha levado uns apalpões de padres — e guardo memórias tremendamente felizes.)
Os juízes portugueses estão igual. E com prejuízo da reputação da maior parte deles, que são seguramente honestos.
(Tal como a maioria dos padres não são abusadores.)
Passamos a vida a dar atenção ao poder político, que é mais glamouroso. Tem partidos, logo conflito e sangue. Há eleições, há quem perde e quem ganha, é uma espécie de jogo. Os atores geralmente carregam um ego de dimensão generosa, pelo que estão disponíveis para se exibirem. São estrelas.
No entanto, esquecemos o poder judicial. Como os juízes devem ser discretos, porque não aplicam a lei em seu nome (e quando não são, geralmente, é mau sinal), vemos os tribunais como sensaborões. Acresce uma enorme formalidade, uma linguagem por vezes impenetrável (quem nunca teve ataques de nervos com o juridiquês?), togas negras e indiferenciadas, um certo ar de paragem no tempo.
O poder judicial está no sistema nervoso central de qualquer ideia de civilização decente.
E tem um enorme impacto (às vezes devastador) na vida das pessoas que a ele recorrem ou são enroladas em processos de estirpes variadas.
Mas como se pode esperar dos cidadãos descanso com a dispensa de justiça, uma das quando há cinco juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, um tribunal superior, suspeitos de viciarem processos ou venderem desfechos de casos?
Os tribunais têm um escrutínio risível, apesar de todo o poder. E o poder corrompe, seja político, económico ou judicial. Sobretudo quando ninguém está a vigiar. À comunicação social só chegam as
sentenças mais aberrantes e as investigações mais suculentas. A avaliação dos juízes pelos seus pares e pelo Conselho Superior da Magistratura — bom, já todos percebemos que não é suficiente.
Enquanto se gastam energias vociferando contra substituir os debates quinzenais (onde pouco se escrutina, são só embates encenados) por debates mensais e setoriais na Assembleia da República, ninguém se ocupa de propor o que seja para aumentar a accountability dos juízes.
As notas dos magistrados, dadas por outros magistrados, são sempre fabulosas.
Ena, são a maior reserva de talento e eficiência nacional. Nem Rui Rangel nem Neto de Moura, esse famoso juiz que enxovalhava as vítimas de violência doméstica nos seus acórdãos, eram cábulas com negativas. A independência dos tribunais tem de ser mantida, claro, desde logo porque de vez em quando têm de julgar casos de corrupção de políticos. Mas os juízes têm de ser mais escrutinados. Não entendo como há anos não há discussão séria sobre isto.
Nos anos da troika primeiras funções de um Estado, ninguém tinha cabeça para reformas da justiça, e o PS tem-se notabilizado por uma plácida imobilidade. Rui Rio faz umas arengas zangadas sobre o Ministério Público. E mais nada.
E os juízes? Durante anos conviveram com um juiz que, dizem as notícias, tinha nível de vida incompatível com os seus rendimentos e os da mulher. Julgaram que Rui Rangel também tinha uma mãe milionária? Ninguém notou nada? Ninguém sugeriu, baixinho, uma investigação ao MP? Não ocorreu nenhuma denúncia anónima? Olharam para o lado e continuaram a dar boa nota?
Se não tenho dúvidas que a maioria dos juízes são honestos e escrupulosos, também aparentam sofrer de “corporativite aguda”. Tanto mais incomodativa quanto é seletiva. O inquérito disciplinar a Neto de Moura foi aberto a ferros pelo CSM, e resultou numa levíssima sanção por acórdão vergonhoso que foi objetivamente nova agressão a uma mulher que já havia sido espancada com uma moca com pregos por dois homens.
Em contraste, a juíza Clara Sottomayor fez uns comentários no mural de Facebook de uma amiga, em choque com o assassinato da pequena Valentina. O CSM correu a abrir inquérito. Estranhos critérios.
Se existir uma minoria de juízes com suspeita de atuações questionáveis ou criminosas — e, se ainda não houve julgamento da Operação Lex, Rui Rangel já foi sancionado pelos pares — é perturbante para a confiança que os cidadãos precisam de ter nos tribunais, também a convivência dos juízes honestos com os prevaricadores inquieta.
Afinal, que valores nortearam os restantes juízes? A solidariedade corporativa ou a procura da justiça e defesa da integridade do sistema?
À conta do maior escrutínio da comunicação social (e, neste caso, as redes sociais são um bom mecanismo de pressão), têm-se visto melhorias. Já tivemos acórdãos sobre casos de violência doméstica que parecem provir de humanos. À volta deste caso, o Supremo Tribunal de Justiça não se escondeu na inexistência de julgamento para expulsar Rui Rangel. E teria sido mais confortável e acomodatício se se escondesse.
Mas permanece a inquietude da complacência de juízes honestos com colegas problemáticos. E se os juízes não devem comentar colegas e investigações concretas, é bom que mostrem que não vivem na Lua. Que percebem a machadada na reputação que é o juiz Rui Rangel.
E tomem a iniciativa na discussão dos meios de escrutínio da atuação dos juízes."
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