Depois do "para Angola rapidamente e em força" do Botas de Santa Comba e de se ter consumado, pelo menos simbolicamente, com a tomada de Nambuangongo, a reocupação das áreas que a UPA chegou dominar , houve que reajustar o dispositivo para se fazer face a uma situação que se adivinhava prolongada.
As acções de polícia (se alguma vez o foram) iriam transformar-se numa guerra de desgaste sem fim à vista, impondo-se uma "vietnamização" da guerra, tão profunda quanto possível.
A existência de vastas áreas intocadas pela guerra, o cariz marcadamente tribal da UPA e a existência de uma população branca e mestiça em franca expansão, permitiam apostar numa participação cada vez maior de tropa recrutada e treinada em Angola, aliviando o esforço que Portugal fazia, agravado pela eclosão de acções de guerrilha em Moçambique e na Guiné.
A tese de Mestrado do Dr Henrique Gomes Bernardo sobre "Estratégia de um conflito - Angola 1961-1974", defendida em 2003 no ISCSP, aborda aquele tema e dela extraímos os dados que, com a devida vénia, apresentamos no quadro e no gráfico aqui reproduzidos.
Vemos, assim, que a seguir à eclosão do terrorismo a percentagem dos efectivos de recrutamento local seguiu uma linha geral ascendente, com pequenas quebras em 1965 e 1969 e uma quebra brusca em 1967. Nos primeiros anos da década de 70, os efectivos de recrutamento local preenchiam mais de 40% do total. Esta participação na guerra não teve, contudo, correspondência no número de baixas, sendo a mortalidade na tropa de recrutamento local cerca de duas vezes menor que a da tropa oriunda da então metrópole.
As estatísticas apresentadas na tese não são suficientemente desagregadas para permitirem compreender as razões desta disparidade. Contudo, desenhava-se, nos últimos anos de guerra, uma tendência para a equalização das taxas de mortalidade (ver valores para 1971-73) que o 25 de Abril veio interromper. O gráfico seguinte mostra que só em 1961, 69 e 73 as taxas de mortalidade estiveram próximas do equilíbrio, sendo o valor médio de cerca de 50%.
Estes dados vêm lançar alguma luz sobre sobre a velha questão agitada por parte da população branca das colónias, em particular de Angola, segundo os quais a guerra foi um negócio para a tropa que ia da metrópole para Angola "encher-se". É verdade que a guerra é sempre um negócio para muita gente e a de Angola não o deixou de ser para muito boa gente (militares, principalmente oficiais do QP, mas também civis e não só da metrópole...) que conseguiam o ingresso em carreiras na administração colonial, bem mais compensadoras que o acumular de comissões, mesmo quando cumpridas no "ar condicionado".
Não devemos, contudo, permitir que as árvores nos impeçam de ver a floresta: as centenas de milhares de jovens que foram arrebanhados para a guerra, para defender o modo de vida colonial que nada lhes dizia e com que nada beneficiavam, em condições de risco de vida duas vezes maior que o que corriam os mancebos incorporados localmente. Ou seja, os mancebos que iam defender a sua própria terra (e o seu modo de vida) faziam-no em condiçoes bem menos arriscadas que os que vinham da metrópole!
Estes estudos que vão aparecendo, à medida que o distanciamento no tempo vai permitindo encarar o colonialismo e a guerra numa perspectiva histórica e menos numa de paixões exacerbadas e sentimentos de perda irreparáveis e podem ser usados como instrumento para dar resposta aos que, tendo refeito a sua vida depois do trauma do regresso das caravelas, não desistem de denegrir o papel da tropa que, defendendo o sistema colonial durante 14 anos, lhes permitiu manter a ilusão de um futuro possível, numa situação perfeitamente anacrónica, sem paralelo no mundo (orgulhosamente sós, dizia o Botas!).
Ilusão mantida com o sacrifício, quando não do sangue e da vida, de toda uma geração.